"Os olhos de Alexandre Orion viram nos painéis enegrecidos… a escrita da morte. Arqueólogo do silêncio, adivinhou sob o negrume da fuligem
 a claridade ocultada pelas camadas
 do fumo invasor"


A INSURGÊNCIA DE ALEXANDRE ORION

Alexandre Orion viu o que ninguém via. Foi ali na passagem subterrânea entre a Avenida Europa e a Avenida Cidade Jardim. As partículas dos poluentes, lançadas pelo escapamento dos carros que passavam pelo túnel, foram grudando furtivamente nos painéis que lhe recobriam as paredes, que se enegreceram. Ninguém mais notara as mudanças. Tem sido assim por aí afora. Com facilidade, a metrópole ganha uma cara permanente de mal lavada, de sujeira crônica, que aparentemente ninguém estranha.
 Não é o sujo do lixo, do monturo de gente desleixada, que qualquer um pode notar e que incomoda à primeira vista, que vai permanecendo mais do que o necessário, sobretudo nas ilhas de pobreza da cidade. Este, agora, é o sujo sutil das áreas ricas, que vai se depositando aos poucos nas superfícies, amansando nossa consciência e nossas distinções do que é sujo e do que é limpo. As viaturas da Guarda Civil Metropolitana não pararam para ver o que estava acontecendo. A Limpeza Pública tampouco achou que devia interferir na mancha negra que se alastrava.

Nem a Polícia Militar achou que houvesse crime no negrume microscópico grudando nos painéis e nos pulmões de quem ali passava, também nos dos próprios PMs, dos funcionários da limpeza pública e dos vigilantes da municipalidade. Nem os controladores da câmera de vigilância do túnel, nas 24 horas de seu curioso labor, puderam, quiseram ou souberam ver o perigo aparentemente invisível disseminado pelos carros, acumulando-se visivelmente sobre os painéis que maquiam as paredes. Não estavam nem aí. Pra quê?! Ninguém lhes disse que é proibido fumar a fumaça dos veículos a motor, da moto e do carro.


Todos estão acostumados com as muitas metamorfoses pelas quais a cidade passa. Tanto as boas, dos jardins e praças arborizadas, em que a semente dá vida à planta, que dá vida à flor,
que dá vida ao beija-flor e que dá vida
à semente de que nascerão a planta e
a flor de outra geração para o beijo de outro beija-flor. Tudo simples e indolor, desde o início dos tempos. Mas também as más metamorfoses, dos painéis enegrecidos dos túneis da cidade, o negror que se difunde sorrateiro pelos pulmões dos que passam, a doença esquiva, a morte antecipada, a vida diminuída. Não é retórica nem alegoria. O jornal O Estado de S. Paulo, de 3 de janeiro de 2010 (p. C11) pergunta a
seus leitores, com base em dados do Movimento Nossa São Paulo: “Sabia que o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta mais de R$ 82 milhões com internações hospitalares decorrentes da poluição veicular na Grande São Paulo? E que ocorrem seis mortes por dia na cidade por causa dos gases nocivos emitidos pelo diesel usado pelos veículos?” Não, eu não sabia. Intuía o problema, mas não imaginava que era tão grave.

É também nessas invisibilidades que a modernidade se propõe, não só no que
a razão possibilita, mas também naquilo que a corrói e nega. Mais do que a vida que suprime, o fumo dessa modernidade cega no conformismo que difunde e
na cegueira que espalha. Nossos olhos estão cobertos pela fuligem desse crime silencioso. A fuligem faz hoje parte não apenas da desordem ambiental, mas também da ordem social e da ordem política. Esta exposição de Orion é eloquente documento e denúncia dessa mutação enferma, da repressão conivente, dos agentes das instituições da ordem atuando como cúmplices do genocídio que se propaga por omissão da vítima.

Os olhos de Alexandre Orion, porém, viram nos painéis enegrecidos a ameaça lenta e sutilmente ali depositada, a escrita da morte.

Arqueólogo do silêncio, adivinhou sob o negrume da fuligem
 a claridade ocultada pelas camadas
 do fumo invasor. Artista plástico, viu grande nas miudezas do silêncio, viu as contorções da vida que sucumbia sob
a camada de sujeira. Resolveu, então, colocar sua alma na obra de revelação das ocultações do túnel, numa instalação de graffiti reverso. Madrugadas a fio, descascou cuidadosamente a fuligem, recolheu a película que tirou para usar como tinta em suas obras, foi desenhando em negativo o negativo da vida: uma galeria de caveiras estendeu-se pelo túnel, iluminadas pela luz amarela das noites paulistanas. Nascia “Ossário”, o extenso e revelador painel dos fantasmas da nossa modernidade inacabada, esqueletos da vida inconclusa, retrato da agonia sem fim que nos rodeia, da vida cinzenta que nos rouba todos os dias a alegria da rosa, a música da poesia, o riso infantil dos que têm esperança.

E aí, antes que a obra ficasse pronta, o operador da câmera de vigilância viu que no túnel havia algo estranho, algo que não deveria estar lá, a obra de arte. A Guarda Civil Metropolitana parou e repreendeu,
a Polícia Militar parou e mandou
parar, a Limpeza Pública mobilizou funcionários, mangueiras e muita água
e lavou o imenso painel, matou a obra
de arte visível sobre a morte invisível. Arte é sujeira, proclamou a impiedosa
e sinistra mangueira comandada pelas mãos ignorantes da prepotência. Poluição não o é. Restituiu o painel à sua falsa e provisória claridade, ao seu significativo nada, que agora contém uma nova e cruel mensagem: a clareza da censura que há na ignorância, no despreparo cultural
dos agentes públicos, no higienismo cultural que nos analfabetiza, nestes tempos de exaltação e louvor da incultura, de condenação do saber e da escrita, de minimização da escolaridade, de refluxo à barbárie da prepotência popular infiltrada no serviço público em nome do progresso social que não houve, da revolução que por aí não haverá.Os grafiteiros estão no índex das rotulações inquisitoriais, condenados à morte na fogueira da cultura antissocial da intolerância.

Banidos do horizonte da ditadura da linha reta que leva ao lá adiante, mas não permanece no aqui nem no agora das contradições do vivencial, incomodada pelas imperfeições do cotidiano, por sua falta de uniformidade, pela criatividade incômoda dos que escrevem e compõem fora da pauta da ordem e do poder prepotente e redutivo do conformismo compulsório. As caveiras de Alexandre Orion morreram no
gesto genocida do poder descabido, da estupidez institucionalizada, silenciadas pelo medo ignorante em relação aos sobressignificados da obra de arte e sua fala eloquente em favor da condição humana. Não morreram, porém, na
alma do artista que, ao exibir as ruínas de sua obra e os documentos visuais
do vigilantismo retrógrado, multiplica
a mensagem que a água da limpeza pública pretendeu apagar, e lhe dá a durabilidade do espírito, que a água repressiva não apaga.

A instalação de Orion se completa nesta exposição, neste desdobramento testemunhal da arte banida, da faxina cultural, nesta ressurreição dialética
em que a arte nasce e morre, ao
mesmo tempo, presa na indignação da sobrevisibilidade do que foi destruído. O Ossário de Alexandre Orion não estava apenas lá nos painéis do túnel senão como primeiro momento. Ele estava na consciência do artista e, por meio dela, está na consciência de todos nós, no nosso incômodo em face do que antes não nos incomodava porque não víamos e, por isso, não sabíamos. As caveiras de Orion erguem-se, de sua segunda morte, no interior da nossa consciência social para falar-nos de sua impaciência e dizer- nos que nos esperam.

Elas ressuscitam também nas imagens que Orion criou e cria com a tinta gerada pela fuligem extraída dos painéis poluídos dos túneis da cidade de São Paulo. Do graffiti reverso das caveiras nascem corpos e imagens de sua arte em paredes e tubos de uma termoelétrica
do Rio de Janeiro. Contralinguagem dos contrários, dialética do movimento no rastro cadavérico da fumaça que suja e aniquila. Poesia visual da insurgência de Orion que nela proclama a humanidade do homem que se ergue teimosamente da desumanização irresponsável.

José de Souza Martins é professor titular de Sociologia da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo

Texto escrito para a exposição Ossário de 2009 e adaptado para o livro Espólio, lançado em 2013

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